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Isto da Escrita

os 6 temas elementares

Tu és um escritor. Escreves fluentemente, por inspiração, pelo menos de 15 em 15 dias, ou escreves disciplinadamente 30 minutos todos os dias, sem ficares à espera da visita das Musas. O importante é que escreves. O segundo ponto mais importante é que desejas saber mais sobre a arte da escrita. Por isso encontras-te aqui. O termo “Escrita Criativa” não te é estranho e provavelmente já fizeste algumas pesquisas que te devolveram resultados curiosos. Pouco a pouco foste-te apercebendo que isto da escrita tem muito mais do que se lhe diga - mais do que apenas deixar fluir a inspiração. Naturalmente, desejas saber mais.

Algures no teu percurso enquanto contador de histórias apercebeste-te de algo fundamental: “o talento, entregue a si mesmo, não faz mais do que se repetir” (Wilde). O talento é o prazer em se realizar uma atividade criativa misturado com um domínio da técnica que vem naturalmente de dentro. A maioria de nós, que chega a “isto da escrita”, tem pelo menos o prazer. Quanto ao “domínio da técnica que vem naturalmente de dentro”, todos conhecemos pessoas que são extraordinários contadores de histórias, mas que nunca escreveram uma linha. Indivíduos que, mesmo sem grande cultura literária, conseguem contar um episódio e fazê-lo rolar rapidamente, de ação para ação, enquanto mantêm a nossa curiosidade. Como espetadores, apercebemo-nos de que essas pessoas utilizam cerca de 4 ou 5 truques para entreter a sua audiência. Pode ser a forma minuciosa como descrevem e pintam o cenário, a maneira como dão a sensação de passagem do tempo, as questões éticas que levantam ou o retrato das suas personagens. Estes 4 ou 5 truques que utilizam dizem respeito à questão do “domínio técnico”, e parte dele pode dever-se a uma propensão natural do indivíduo e a outra parte ao que aprendeu de ouvir os outros contar. Mas o que é realmente comum e transversal a todas essas pessoas é a necessidade de passarem a sua experiência através das cores da sua emoção. Ora, quando a forma como experienciamos o mundo é particularmente rica, a necessidade de o comunicar deixa de ser satisfeita apenas via oral e sentimos o apelo da escrita. A partir daí passamos a precisar de um pouco mais do que “4 ou 5 truques”.  

Podemos então dizer que “isto da escrita” é acerca de três coisas: prazer, domínio técnico (inato e adquirido) e necessidade (de comunicar as nossas experiências pelo filtro das nossas emoções e imaginação). Divididas assim, temos aqui as três bases centrais que são abordadas pela Escrita Criativa. Vocês querem continuar a ter aquele prazer do fluxo da inspiração, enquanto executam a vossa história com perfeito domínico técnico, para satisfazer a necessidade de comunicar o mundo da forma singular como o veem e experienciam.  

O prazer é geralmente irracional, enquanto que o domínio técnico, tirando as práticas que já nos são inatas ou automáticas, cai no campo racional. Prazer e domínio técnico, às vezes entrechocam e geram frustração. Queres ter o prazer de escrever aquelas 200 páginas de prosa poética, descrevendo todo o bricabraque que estava na sala antiga da tua avó, exatamente como o recordas. Mas queres ter também o domínio técnico de fazer a tua história rolar para a frente e de manter o leitor interessado. O escritor que escreve de 15 em 15 dias, só quando a inspiração se apodera dele, conservará o prazer. O escritor que escreve todos os dias, à mesma hora, um mínimo de 30 minutos, mesmo sem inspiração, terá um maior domínio da técnica. Para aliar estes dois campos e satisfazer a necessidade de comunicar os nossos mundos singulares, podemos dizer que os temas da escrita Criativa são 6:

  • Estruturas Narrativas;

  • Personagens;

  • Diálogos e Monólogos;

  • Cenários;

  • Géneros e convenções;

  • Estilo e Voz Pessoal;

 

Os primeiros 5 temas correspondem ao domínio técnico, enquanto que o último – Estilo e Voz Pessoal – lida com os problemas da inspiração, do bloqueio de escritor e da originalidade. Porém, saber mais acerca de cada um desses 5 campos do domínio técnico revela-nos que tipo de escritor somos, quais as dificuldades que encontramos mais frequentemente, e qual o tipo de voz que emerge naturalmente sempre que nos sentamos a contar uma história.

 

Estruturas Narrativas

Dizem respeito às formas milenares que as pessoas têm usado para contar histórias e manifestam-se em padrões de narrar que têm uma mesma forma em todo o mundo, independentemente da cultura. São povoadas por alguns símbolos e personagens em que o ser humano organiza psicologicamente as experiências vividas. As estruturas narrativas ajudam o escritor intuitivo (pantser) a reorganizar e a aprimorar a sua história já depois de a ter escrito. E ajudam o escritor planeador (planner) a criar a sua planilha de cenas (outline) antes de começar a escrever.

Personagens

As personagens são tanto melhores quanto mais se parecem com verdadeiros seres humanos em toda a sua complexidade: beleza, feiúra, paixão, desespero, tristeza, esperança. Os grandes escritores do século XIX, como Dostoievski, foram apelidados de “psicólogos” porque souberam traçar o ser humano com todos os seus dilemas. Hoje podemos servir-nos dos ensinamentos da Psicologia moderna para criar personagens vivas e multidimensionais. Mas o grande auxílio de um escritor, aqui, será sempre esse seu hábito natural de observar um desconhecido na rua e de se perguntar o que terá aquela pessoa vivido, sofrido, chorado e celebrado.

Diálogos e Monólogos

Geralmente contam-se histórias sobre momentos em que todas as bases de segurança de uma personagem são, de repente estilhaçadas, e ela tem de encontrar uma nova coragem em si para superar as dificuldades. Nessas situações, quando nos sucedem, todos deixamos de acreditar: nos outros e em nós mesmos. Segue-se daqui que todos os diálogos passam a ser uma forma de descobrir a informação que achamos que o outro esconde, enquanto procuramos não revelar a nossa própria situação e objetivo. Ou, então, agarramo-nos, obstinadamente, a uma visão do mundo que se opõe à dos demais e só nos pode valer a nossa capacidade de persuasão. Simultaneamente, nesses momentos de tensão e vulnerabilidade, a personagem explode em diatribes que revelam a sua dor face aos obstáculos, e em odes assim que supera essas mesmas tribulações. Os personagens sabem pouco sobre as motivações dos outros e não tudo sobre as suas próprias. O choque entre prioridades, dentro do próprio indivíduo e à sua volta, torna-se inevitável: amor vs. família vs. lei/dever vs. ética vs. sociedade/instituições. 

Cenários

Enquanto o herói das antigas mitologias viajava ao submundo, ao topo de uma montanha sagrada ou a um labirinto, o herói dos tempos modernos substituiu esses locais por caves ou sótãos onde se escondem mistérios obscuros, topos de arranha-céus onde se enfrentam os mais poderosos, labirintos de escritórios em open-space onde a vida se consome numa burocracia absurda, constantemente assediada pelo Minotauro da chefia narcisista, ou em portos, armazéns e fábricas abandonados onde nos confrontamos com a nossa própria sombra. 

Géneros e convenções

Mesmo que o desejo de um escritor seja o de produzir a chamada “alta cultura” e de não se alinhar com um género literário específico, esta mesma “alta cultura” está radicada em muitos aspetos da cultura popular. Durante milénios o método preferido de transmissão de histórias foi sempre o oral e todos participavam na criação pelo mecanismo do “quem conta um conto acrescenta um ponto”. Além do mais, cada autor tem um pendor para certo tipo de histórias: crime, fantasia, romance, ficção científica, terror, etc. Estudando como, por exemplo, os contos de Allan Poe de “raciocinalização” (expressão dele) deram origem ao policial moderno, ou como escritores românticos dos quais se destaca  ETA Hoffman, com o seu Sandman, despertaram o nosso fascínio pelas histórias de terror, podemos aprender os mecanismos que dão origem às mais refinadas histórias.  

Estilo e Voz Pessoal

Este tema relaciona-se à tentativa de descoberta de que tipo de escritor somos, com que frequência escrevemos, que temas nos surgem mais facilmente, para que voz literária propendemos. Descobrindo estes aspectos descobrimos também a razão dos nossos bloqueios de escritor. Por exemplo, o indivíduo que só escreve por inspiração poderá encontrar dificuldades em escrever de forma rotineira. O perfecionista, que tem os seus modelos literários num pedestal, poderá sentir-se sempre inferior em relação a esses autores e, devido a isso, apagar tudo quanto escreve. O racionalista será melhor a editar (rever) do que a fluir criativamente, enquanto que o intuitivo será melhor a fluir do que a editar. Aquele que é excelso em descrever inventários de tudo o que se encontra num cenário, na memória de um personagem, poderá não ser tão exímio em dotar a sua personagem de multidimensionalidade – daí servir-se amiúde daquele mecanismo como compensação. Alguns recorrerão ao barroquismo poético e ao fluxo de consciência para se desculparem da ausência de uma narrativa com princípio, meio e fim. Enquanto que outros poderão ter uma perfeita noção do encadeamento e causalidade das ações, e nem por isso conseguir ir buscar os temas universais que nos interessam a todos. Descobrindo, através do curso de Escrita Criativa, que tipo de autor se é ajudará a descobrir que tipo de problemas mais comuns surgem no processo criativo, e que tipo de soluções poderá empregar.  

Luís Filipe Soares

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